O ÁLBUM DUPLO Nada como um dia após o outro dia (2002), a mais recente realização do grupo de rap Racionais MC's, é um disco violento e perturbador – como todos os anteriores na carreira do quarteto, formado por Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e Kl Jay –, mas doloroso e tocante como nunca antes. Duas músicas excepcionais, "Jesus chorou" e "Negro drama", retomam os temas recorrentes de suas letras: o cotidiano de violência hiperbólica da periferia descrito em longas letras de caráter narrativo e tom de revolta; a denúncia do preconceito racial contra os negros; um forte apelo religioso que faz da palavra instrumento de iluminação e conforto; um sentimento arraigado de pertencimento a uma determinada região da cidade de São Paulo, onde nasceu e vive o líder da banda, Mano Brown: a Zona Sul1 e algumas de suas localidades, como o Capão Redondo e a Vila Fundão. Ao mesmo tempo, o disco apresenta uma face de lirismo, consciência da passagem do tempo e reflexão sobre a posição social do grupo que, se não é absolutamente inédita nas composições dos Racionais, ainda não havia aparecido de forma tão evidente e tocante.
Negro drama é um rap de quase sete minutos, em que Edy Rock e Mano Brown revezam-se ao microfone. A voz grave e áspera do primeiro dá início à música:
Negro drama / entre o sucesso e a lama / Dinheiro, problemas, inveja, luxo, fama / Negro drama / Cabelo crespo e a pele escura / a ferida, a chaga, à procura da cura / Negro drama / Tenta ver e não vê nada / a não ser uma estrela / longe, meio ofuscada / Sente o drama, o preço, a cobrança / no amor, no ódio, a insana vingança / Negro drama / Eu sei quem trama e quem tá comigo / o trauma que eu carrego / pra não ser mais um preto fodido / O drama da cadeia e favela / túmulo, sangue, sirene, choros e velas / Passageiros do Brasil, São Paulo / agonia que sobrevive / em meio a zorra e covardias / Periferias, vielas, cortiços / Você deve estar pensando o que você tem a ver com isso / Desde o início, por ouro e prata / olha quem morre, então veja você quem mata / Recebe o mérito a farda que pratica o mal / Me ver pobre, preso ou morto já é cultural [...]
A letra começa definindo uma situação geral, aquela de quem tem "cabelo crespo e a pele escura": o drama de viver entre o sucesso e a lama é aquele dos negros brasileiros, mais especificamente dos negros das periferias de São Paulo, onde vivem os autores da música. O adjetivo "negro", anteposto ao "drama", assume também uma carga qualitativa negativa, mais metafórica – de escuridão, noite, treva –, que, no universo de forte religiosidade em que o grupo vive, traduz o medo da perdição. O verso "Tenta ver e não e vê nada" insere uma terceira pessoa na letra do rap, um personagem indeterminado – protagonista desse negro drama –, que tenta ver no horizonte algo como uma promessa de futuro, mas só vê um brilho pálido de estrela2.
A terceira pessoa mantém o caráter generalizante da letra, mas a seguir, o "eu" assume voz para falar dessa experiência que é, ao mesmo tempo, comunitária e pessoal, o que o posiciona dentro do contexto que descreve. Edy Rock carrega consigo um trauma: um sentimento de cobrança para não ser mais um "preto fodido" (como dirá a letra mais adiante, ele está "sempre a provar que [é] um homem e não um covarde").
Os versos seguintes voltam a falar do drama geral, o drama da "cadeia" e da "favela", traduzido em signos concretos, sofridos e lúgubres como "túmulo, sangue, sirene, choros e velas". A música segue na alternância entre a voz em primeira pessoa e a construção da imagem do negro drama. Logo, porém, o rapper faz outro movimento, ao voltar-se diretamente ao ouvinte: "Você deve estar pensando o que você tem a ver com isso". A frase é endereçada a quem o escuta, mas certamente não aos negros, não àqueles que vivem o negro drama, a quem não ocorreria a dúvida de que o rapper suspeita haver em seu interlocutor. O verso parece expor a consciência de que, afinal, ele não fala apenas para os seus iguais, mas para uma população mais ampla, talvez a sociedade como um todo.
Além desse posicionamento que reflete uma consciência do lugar ocupado atualmente por eles, Racionais, no contexto social brasileiro, a letra compreende também sutis alusões ao processo histórico do país. É preciso estar atento aos dois lados da carnificina promovida no Brasil: "Olha quem morre, então veja você quem mata". Desde o início, diz Edy Rock, mata-se por "ouro e prata", o que evidencia a correspondência com a história do Brasil, lugar onde, desde o início da colonização, houve aprisionamento e abate de carne negra e indígena, justificadas pela sede do capital – às vezes, literalmente, sede de ouro e prata, quando da descoberta do ouro nas Minas Gerais, no final do século XVII, mas também antes, durante o ciclo da cana-de-açúcar, e depois, nas lavouras de café, como atualmente na periferia das grandes cidades, segundo dizem os Racionais. Agora, porém, a violência contra os negros assume um caráter entre moral e selvagem, em que "recebe o mérito a farda que pratica o mal". A referência à polícia, materializada na palavra""farda", é evidente, e a frase expõe a situação de conivência e incentivo com que é encarada a violência praticada contra a população pobre.
Edy Rock voltará a falar em nome próprio, agora de forma bastante afirmativa:
[...] Eu sou irmão dos meus trutas de batalha / Eu era carne, agora sou a própria navalha / Tim, tim..., um brinde pra mim / Sou exemplo de vitórias, trajetos e glórias / O dinheiro tira um homem da miséria / mas não pode arrancar de dentro dele a favela [...]
O cantor dos Racionais acredita-se um exemplo de vitória e propõe a si mesmo um brinde solitário, que é a tomada de consciência íntima do seu percurso bem-sucedido. Saiu de uma posição de miséria, mas não teve a favela que há dentro dele arrancada de seu peito. Continua sendo irmão dos "trutas de batalha". A grande diferença, promovida talvez pelo sucesso que o grupo conquistou, é que ele passou de "carne" a "navalha"3. As imagens, aliadas, são poderosas e agressivas, e remetem, mais uma vez de forma alusiva, à história brasileira.
A segunda parte da mesma música é cantada por Mano Brown. O rapper introduz a sua fala com algumas palavras que permitem aprofundar a compreensão do que é o negro drama:
Crime, futebol, música/ Eu também não consegui fugir disso / Eu sou mais um.
Mano Brown é mais um a protagonizar o drama de quem nasce negro no Brasil: se escapar da lama, resta-lhe o "sucesso" – no crime, no futebol ou na música –, um sucesso que se dá, na opinião dos Racionais, de forma a contribuir com a manutenção do sistema de exclusão. Eles não fazem parte desse mecanismo. Ao contrário, eles se consideram o "efeito colateral do sistema", como diz a letra de "Capítulo 4, versículo 3", música do disco anterior, Sobrevivendo no inferno. Por isso, a fala de Mano Brown ilustra, com sentimento de dor compartilhada, o negro drama vivido não apenas por quem é negro e os escuta, mas também por eles próprios, negros e artistas.
Por isso, por não ter conseguido fugir do drama de tantos negros – aquele de ser artista, de fazer música no Brasil –, Brown precisa, assim como Edy Rock na primeira parte da música, dirigir-se também àqueles que consomem música e arte no país. Mano Brown conta a sua própria história na segunda parte de "Negro drama" e, a certa altura da letra, volta-se, em tom acusatório, a um interlocutor específico:
Ei, senhor de engenho / eu sei bem quem você é / sozinho você num güenta / Você disse o que era bom / e a favela ouviu / uísque, Red Bull, tênis Nike, fuzil / [...] Seu jogo é sujo / e eu não me encaixo / eu sou problema de montão / de Carnaval a Carnaval / Eu vim da selva, sou leão / Sou demais pro seu quintal [...]
De novo, o apelo à raiz histórica brasileira serve para reforçar o estrago contemporâneo da herança colonial e, por extensão, a persistência da lógica escravista. Foi o senhor de engenho quem ensinou a favela a sonhar com os bens de consumo e a cultivar o fascínio das armas. Sozinho, no mano a mano, o rapper sabe que o senhor de engenho não o enfrentaria: a classe dominante precisa da polícia e dos seus mecanismos de alienação. Brown diz que não se encaixa nesse jogo sujo, "ele é problema de montão de Carnaval a Carnaval". Mais adiante, Brown, ainda dirigindo-se ao senhor de engenho, vai mencionar o fato de a elite e a classe média também escutarem rap: "Inacreditável, mas seu filho me imita [...] Seu filho quer ser preto / Ah!, que ironia!".
O rap dos Racionais pretende, ao que parece, levar a lei da selva que domina a periferia ao interior da casa grande, aos ouvidos da elite, com a certeza brutal – com a agressividade que os afirma e protege – de que eles são demais para o quintal das classes dominantes. E, como afirmara Edy Rock antes, "me ver pobre, preso ou morto já é cultural". A denúncia do grupo não poderia ser mais grave: nós, pretos e pobres da periferia, vivemos segundo a lei da selva, lei esta que, apesar de absurda e violentadora, já foi incorporada à cultura brasileira, em que é normal ver os negros pobres, presos ou mortos.
Como se nota, o grupo atravessa um momento de reflexão profunda e expressão direta sobre a própria dimensão e sobre o papel que desempenha, especialmente entre os seus fãs e seguidores, mas também na sociedade como um todo. Formado em meados da década de 1980, os Racionais se tornaram, ao longo dos anos de 1990, o mais conhecido grupo de rap do país, com enorme popularidade na periferia das grandes cidades brasileiras e grande ressonância também na classe média. Especialmente a partir de 1997, quando lançam Sobrevivendo no inferno, os integrantes, suas letras e músicas se tornam nacionalmente conhecidos. O CD fez enorme sucesso – segundo a banda, foram vendidos mais de um milhão de exemplares do disco
– e levou o rap a espaços antes pouco freqüentados pelo gênero: as rádios comerciais, a TV e os toca-discos da classe média branca
– e levou o rap a espaços antes pouco freqüentados pelo gênero: as rádios comerciais, a TV e os toca-discos da classe média branca
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